'Tenho a impressão de que a culpada sou eu e que, atrás de mim, os 50 são vítimas. Aliás, eles deveriam se sentar no meu lugar', ironizou Gisèle Pélicot após questionamentos e argumentos apresentados pela defesa dos 50 coacusados. Gisèle Pélicot deixando tribunal nesta quarta (18)
REUTERS/Antony Paone
Nesta quarta-feira (18), Gisèle Pélicot, a francesa que foi drogada pelo marido por 10 anos para que estranhos a estuprassem, demonstrou raiva pela primeira vez desde que o julgamento do agora ex-marido, Dominique Pélicot, começou --há mais de duas semanas.
A idosa de 72 anos, que vem acompanhando todas as audiências presencialmente e abriu mão do anonimato para expor o caso, se irritou com as perguntas feitas pelos advogados de defesa dos 50 homens que respondem como réus junto com o ex, e afirmou:
"Desde que cheguei a esta sala de audiência, me sinto humilhada".
Questionada se havia consumido bebidas alcoólicas, por exemplo, Gisèle voltou a negar que tenha sido cúmplice de Dominique.
"No estado em que estava, eu não podia absolutamente responder a ninguém. Eu estava em um estado de coma e os vídeos que serão exibidos vão poder atestar isso. Os peritos ficaram chocados com esses vídeos, e são homens. Nem por um segundo eu dei meu consentimento ao senhor Pélicot nem a esses homens", disse.
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O que sabe sobre o caso da francesa que foi drogada pelo marido e violentada por mais de 50 homens sem saber
Indignada com a tentativa da defesa em criar argumentos para justificar os abusos que sofreu, a francesa ainda ironizou:
"É tão humilhante e degradante ouvir isso. Tenho a impressão de que a culpada sou eu e que, atrás de mim, os 50 são vítimas. Aliás, eles deveriam se sentar no meu lugar".
Sobre a fala de um dos advogados, que disse que "sem a intenção de cometê-lo, não há estupro", Gisèle rebateu.
"O estupro é uma questão de tempo? Três minutos, uma hora? Estou chocada! Se fosse a mãe ou irmã deles aqui, eles teriam a mesma defesa? Eles vieram me estuprar, não importa o tempo que passaram. Os 50 não se perguntaram sobre o consentimento? O que são esses homens? São degenerados ou o quê? Em nenhum momento eles se perguntaram! Não existe 'estupro e estupro'. Um estupro é um estupro", afirmou.
Aplausos de apoiadores
Francesa dopada pelo marido para ser estuprada por outros homens é aplaudida
Na terça-feira (17), Gisèle foi ovacionada ao deixar o tribunal. Após uma semana de atraso, por causa de problemas de saúde, Dominique Pélicot, réu principal da ação, foi ouvido. Ele se declarou culpado de todos os crimes dos quais é acusado e admitiu: "Eu sou um estuprador, como todos os que estão nesta sala. Eles não podem dizer o contrário".
Presente na audiência, Gisèle reagiu às primeiras declarações do ex-marido.
"Para mim é difícil ouvi-lo. Durante 50 anos vivi com um homem que não teria imaginado nem por um segundo que pudesse fazer isso. Eu tinha total confiança neste homem", lamentou.
Após a fala da ex-mulher, Dominique pediu perdão a ela e disse que ainda a ama, apesar dos crimes que cometeu:
"Eu era louco por ela, ela se tornou aquela que substituiu tudo. Eu a amava imensamente, como ainda amo. Eu a amei bem por 40 anos e a amei mal por 10. Eu estraguei tudo, perdi tudo. Eu nunca deveria ter feito isso".
Ao sair do tribunal, no intervalo da audiência, Gisèle foi muito aplaudida por dezenas de pessoas que estão no local para apoiá-la e recebeu um buquê de flores.
Com um sorriso no rosto e agradecendo as palavras de apoio que recebia, ela preferiu não dar declarações à imprensa.
Gisèle Pélicot agradece apoio ao sair do tribunal
Christophe SIMON / AFP
Gisèle deu depoimento forte
Gisèle contraiu quatro infecções sexualmente transmissíveis em consequência dos abusos. A revelação foi feita pela perita responsável pela avaliação clínica e ginecológica dela durante um dos dias de julgamento.
"Ela escapou milagrosamente da contaminação pelo HIV e pelas hepatites B e C, mas contraiu quatro doenças sexualmente transmissíveis, necessitando de tratamento com antibióticos, incluindo um por via intramuscular", afirmou a médica.
No mesmo dia, ela também falou pela primeira vez sobre tudo que sofreu:
"Assisti a todos os vídeos. Não são cenas de sexo, são cenas de estupro; dois, três deles sobre mim. Fui sacrificada no altar do vício. Quando vemos essa mulher, drogada, maltratada, morta na cama... Claro que o corpo não está frio, está quente, mas eu estou como se estivesse morta. Esses homens estão me contaminando, aproveitando-se de mim", declarou.
Além do ex-marido, que pode pegar até 20 anos de prisão, mais 50 homens, com idades entre 26 e 74 anos e perfis diversos, respondem pelos crimes que estão sendo julgados; 18 deles estão em prisão preventiva.
Ao serem questionados pelo juiz, 35 réus se declararam inocentes e 13, culpados. Um deles está foragido e outro não compareceu ao tribunal.
Ao ser questionada sobre os 35 que alegam inocência, Gisèle não poupou os abusadores e ressaltou o fato de nenhum deles ter denunciado o que ela vinha sofrendo.
"Que eles reconheçam os fatos, o contrário é insuportável. Que eles tenham, pelo menos uma vez na vida, a responsabilidade de reconhecer seus atos. Estes senhores permitiram-se entrar na minha casa, não me violaram com uma arma apontada à cabeça. Estupraram-me com toda a consciência. Por que não foram à delegacia? Até um telefonema anônimo poderia salvar minha vida", afirmou.
A divulgação do caso ao público foi uma escolha de Gisèle, de 72 anos. Segundo um de seus advogados, ela renunciou ao seu direito ao anonimato para que "isso nunca mais aconteça" e porque um julgamento a portas fechadas era "o que seus agressores queriam".
Segundo a imprensa que acompanha o caso, durante todo seu depoimento, que durou duas horas antes de um intervalo para almoço, a francesa se mostrou firme. No entanto, ao juiz, ela admitiu:
"Dentro de mim sou um campo de ruínas. A fachada é sólida, mas por trás dela..."
Gisèle Pelicót descobriu os estupros no dia 19 de setembro de 2020. Após o marido ser flagrado filmando sob as saias de três mulheres em um supermercado, ela foi intimada a depor na delegacia e um policial a mostrou uma das imagens encontradas no computador de Dominique.
Réus sendo orientados por advogada durante audiência
Christophe SIMON / AFP